Páscoa, Pessach... E me lembro dos instantes finais que precederam à Santa Ceia. Abaixo, um trecho do meu primeiro livro "Eu, Pilatos". Justiça à Judas:
E o Rebbe disse:
- O que fazes, faze-o depressa! Faze o que tens que fazer!
Por acaso essa frase não soa como um comando? Como uma ordem a ser
cumprida? Yehoûdâh não se conformava com o fato de ser instrumento de
uma profecia. Lembrava a todo instante da conversa mais amarga que havia tido
com o Rabi sobre a importância do seu papel na história da humanidade. O
discípulo tinha a sofrível incumbência de procurar o Sinédrio para promover um
encontro entre Yeshua e o *Cohen Gadiol. Sabia que os sacerdotes
do colegiado judeu estavam ávidos por interrogar a Yeshua. Todavia,
tinha plena convicção que os festejos do Pessach, o espírito da
fraternidade, além da proibição de qualquer açoite ou morte de um judeu nas festividades,
afastariam a hipótese de uma condenação do seu Mestre. Yehoûdâh contava
também com os poderes sobrenaturais de Yeshua, que haveria de mostrar
quem era o verdadeiro rei dos judeus. Deu no que deu... O Sinédrio,
extremamente ofendido pelas práticas antijudaicas daquele nazareno e pelos
últimos acontecimentos em Yerushlaim, resolveu entregar aos romanos, sem
julgamentos, o local onde o grupo se encontrava.
A predisposição em condenar por sedição era um prato combinado
previamente. E foi o que aconteceu, Yeshua foi entregue finalmente às
mãos de Pontius Pilatus. Yehoûdâh se sentia como um fantoche e
morria aos poucos, muito mais aos poucos do que Yeshua pregado no patimbulum.
As divagações eram como agulhas a picar seu cérebro. Por que havia sido
escolhido para uma tarefa tão árdua e inútil. Qual a meta de se entregar ao Golgotáh,
com nuvens ameaçadoras que encobriam os céus azuis? Por que fazer com que os
anjos derramassem suas lágrimas? Qual era o objetivo? Quem Yeshua libertaria
com isso?
Yehoûdâh mergulhava na mais profunda
tristeza e arrependimento de algo que jamais tinha intenção de fazer. Jogava
para cima de suas costas, toneladas e toneladas de uma amargura corrosiva. A
sombra era mediúnica. Uma legião sombria tomava posse dos seus pensamentos.
Terá sido o Rabi, um impostor? Será que todo o tempo empreendido em sua
companhia teria sido em vão? O manto negro cobria ainda mais sua cabeça. Por
que prosseguir vivendo se a vida era um cárcere de ilusões e sofrimentos? Onde
está Ab-bã que patrocina a luxúria e a ostentação? Que Ab-bã é
esse que tanto incentiva a infâmia e a arrogância? É o mesmo Ab-bã sem
força, sem poder, que prega a injustiça por meio do açoite aos fracos? É o
mesmo Ab-bã que o Mestre invoca nas noites de luar, ao relento, sob o
brilho teimoso das estrelas e que o céu cisma em mostrar a escuridão? O peito
lhe doía muito. Estava sufocado pelo negrume das suas ideias como se Deus fosse
o único culpado. Yehoûdâh continuava ali, prostrado, ruminando seu
desespero. Eu podia ver, por intermédio da clarividência, um enxame de vampiros
a sugar sua energia vital. Formavam uma cúpula vermelha ao redor do discípulo.
Era como um batalhão de sanguessugas, de canibais sorvendo a carniça. Muitos
sorriam sarcasticamente e emitiam urros de pavor e deleite. Um cheiro azedo
tomava o ar. A energia de Yehoûdâh esvaía-se a cada minuto. Eu assistia
ao espetáculo dantesco. Tinha vontade de vomitar por todos os poros. Os olhos
das criaturas pingavam sangue. Seus dentes afiados voavam no pescoço do pobre
apóstolo e sugavam o resto de suas forças. Uma ideia fixa de morte tomava de assalto
seu pensamento como uma porta que teima em bater com o vento. Yehoûdâh
levantou-se decidido de sua meditação gris, à sombra daquela árvore de maus
frutos. Iniciou uma caminhada lenta e absorta pelo pesar. Era como um ritual fúnebre, onde um
séquito de fantasmas carnívoros aguardava o desenlace final. O saco de couro
com as moedas que arrecadava para o grupo messiânico estava preso ao seu corpo.
Seguiu para um penhasco. Era como um réu conduzido por mãos invisíveis que
bradavam seus gritos infernais. Suas pupilas estavam fora de órbita, seu universo
em desencanto. Lembrou-se das moedas e retirou-as da cintura e bradou em voz
alta: - fica com o que é teu!
Atirou o saco de metais ao abismo, com fúria, com nojo de tudo que
era mundano. Tomou fôlego, fechou os olhos e mergulhou seu corpo para a morte.
Durante a queda chorou uma única lágrima de arrependimento quando se lembrou da
imagem do seu Mestre. Desferiu um grito ensurdecedor antes de bater mortalmente
a cabeça na pedra: - Salva-me! Salva-me! Sal...
O corpo jazia na terra, mas Yehoûdâh tinha a sensação de
que continuava caindo, caindo...
Yeshua escutou sua dor. O discípulo
perdeu a consciência. Tempos depois, Yehoûdâh recobrou o resto de sua
lucidez e sentiu-se reconfortado. O chão duro e a poeira do deserto davam lugar
ao colo mais cândido de um pai. Rebe Yeshua acariciava seus cabelos e
confortava seu espírito. Yehoûdâh mal podia entender, mas dormia tranquilo
agora, como uma criança, um menino socorrido por seu pai. Yeshua
entregava seu filho às mãos dos anjos. A legião de vampiros debandara aflita embrenhando-se
nas fendas das pedras com medo da luz.
Essa visão final me saltou um questionamento: Yehoûdâh
somos nós! As nossas amarguras,
o nosso derrotismo, a nossa insegurança. O medo de não termos a
fiança de Deus. A nossa sabotagem, a autoobsessão, as culpas que derretem o
nosso cérebro e nos causam doenças, males, distúrbios. Yehoûdâh é a
traição contra a nossa própria essência. São as bactérias que se infiltram em
nossas entranhas e devoram os nossos sonhos de bem-aventurança.
Yehoûdâh jamais foi culpado por qualquer
ato, jamais foi artífice de qualquer crime contra a humanidade. Nunca foi algoz
de nada. Ele apenas esteve no momento certo para servir a Algo maior que nunca
compreendera. Nem tampouco, o povo judeu pode ser culpado pelos desmandos,
pelos melindres e pelas sandices de um colégio de sacerdotes corruptos. Assim,
a história romana atribuiu a morte de Yeshua a um povo mercantilista que
se vendia por moedas de prata, enquanto que um romano lavara suas mãos do
sangue de um justo. Yehoûdâh se sacrificou para cumprir o que estava
escrito pelas mãos do Grande Profeta. Yehoûdâh foi divino por fazer a
parte mais podre, limpar e arar a terra. Minha visão foi interrompida por um
beijo. O beijo de boa noite do meu pai. Ou será o beijo sutil de gratidão de Yehoûdâh?
Um beijo verdadeiro.
* Arquivo Akáshico – uma espécie de subconsciente do Planeta onde
ficam reservadas as memórias dos acontecimentos.
*Zelota – movimento político subversivo contra os invasores de
Jerusalém;
*Moshe – Moisés;
*Cohen Gadiol- Sumo Sacerdote do Sinédrio