O Pessach estava próximo. A cidade preparava-se para receber centenas de milhares de fiéis de todos os recônditos de Israel. Conforme dizia o governador, se Yerushlaim já era estreita, fétida de esgoto e de excrementos, naquela ocasião então dobrava seus odores pútridos com os sacrifícios animais e as romarias intermináveis de pó e suor. Pontius detestava tudo isso, abominava os sons dolorosos das oferendas a Deus. O praefectus engolia politicamente aquela manifestação que julgava ser “submundana”. Entretanto, naquele ano, justo naquele ano, a amarga espera estava diferente, silenciosamente diferente. A preocupação de Civílis, um dos comandados de confiança de Pilatus, era visível. Algo estaria por vir? O primipulus atreveu-se:
– O que te aflige, senhor? – indagou o centurião.
– Não sei... Mas, sinto que algo está para acontecer. Como se o silêncio estivesse me ditando algo ruidoso, violento, atentando contra a calmaria deste *Avernum. O barco de *Caronte aguarda seus passageiros. Sei lá. Uma convulsão, uma rebelião, alguma manifestação destes seres de abismos.
– Impressão, senhor! É a velha tensão da festa que se aproxima. Tudo será como antes, como sempre foi. Passarão os ritos, as solenidades, e tudo voltará à normalidade...
– Como se o normal fosse agradável... Civílis, fica de sobreaviso. Procura ficar atento para não cometer abusos, principalmente nestas ocasiões. Só aja com rudeza se não houver nenhuma outra solução, mas procura fazê-lo longe das vistas do povo.
– Conta comigo, meu senhor. Nada acontecerá sob teu comando. Repousa tranquilo, nenhum mal cairá sobre a tua cabeça. Guardaremos teus sonhos como cães fiéis que adormecem ao lado do seu dono.
– Civílis, meu nobre amigo e guardião, confio na tua lealdade e previdência. Sei que farás o possível para que nada fuja ao teu controle, onde a tua vista alcança. Todavia, meu medo é onde a tua vista não alcança, nobre rapaz.
– Terei mil olhos para ti, meu senhor. Descansa agora, tua esposa o aguarda.
Pilatus recolheu-se aos seus aposentos. A bela dama já estava adormecida. Pôde observar seu esbelto corpo deitado sob o linho cru. Todavia, no mesmo instante em que Pontius deitava sua corpulência na cama, eu, Millmann, passara dias com a velha sensação de espreita pelo ar. Uma esquizofrenia saudosa. Só que desta vez, a escuridão era uma grande aliada. É nela que costumo orar e compor este manuscrito. Algum dia será lido?
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